por Marcio Carvalho de Sá, em co-autoria com:
Elaine Cristina Montenegro de Paula Bastos, Bruna Santos Souza, Cristiane Postiga de
Castro, Daniel Rodrigues Silva, Isabela Cristina de Azevedo Teixeira, Izabela Amoreth,
Priscila Fiuza Meireles, Sávio da Silva Martins de Mello e Thaiane Almeida de Souza.
I – Considerações iniciais
O presente estudo, apesar de ser exercício de atividade cognitiva, em verdade
emerge de dentro do peito por vermos nascer uma situação de injustiça tributária que, se não
tiver seus rumos imediatamente corrigidos, pode gerar insegurança jurídica nas relações
comerciais exatamente no maior centro de negócios de toda a América Latina, o estado de
São Paulo.
A injustiça apontada, como o nome do artigo revela, tem natureza tributária e ocorreu
mais precisamente na deflagração pública de uma operação de fiscalização da Secretaria da
Fazenda e Planejamento de São Paulo denominada Operação Loki.
Ab initio, quero mencionar que sou membro e um do fundadores de um movimento
orgânico chamado Time Holding Brasil, o qual nos orgulha por conter em suas fileiras os
maiores escritórios de Planejamento Patrimonial do país, e que os procedimentos que
comumente adotamos para nossos clientes, nem mesmo de perto se aproxima das situações
descritas como objeto de fiscalização por parte do referido órgão fiscalizador.
No entanto, identificamos nos fundamentos apontados um grave elemento de injustiça
que merece uma análise mais cautelosa para que esta não se perpetue.
E, ao nosso turno, apenas nos calarmos porque nada tem a ver com o que estamos
operando em prol de nossos clientes, ignorando o injusto e se submetendo à ditadura do
“cale-se porque você não está em lugar de fala” é fazer coro com a própria injustiça.
“Injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar.”
Martin Luther King Jr.
Ainda in limine, é muito importante ao operador, diante da situação que causa
indignação não se permitir fazer uma análise apaixonada, mas cognitiva, de sorte que é
fundamental evidenciar que não vislumbramos qualquer ato de má-fé nos indivíduos que
ocupam a função pública que aqui questionamos o alargamento funcional de seus atos.
Contudo, como contribuintes e cidadãos, os convidamos a uma posição mais cautelosa, para
que a boa missão não acabe por criar insegurança ao ambiente dos negócios e contribuir
para a fuga de empreendedores já tão proeminente em nosso país.
II – O procedimento administrativo do Lançamento de Ofício
Dispõe o art. 149 do CTN que o Lançamento será efetuado de ofício nos casos que
mencionam seus dispositivos. E aqui, desejamos olhar mais atentamente para o inciso VII, a
saber:
Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade
administrativa nos seguintes casos:
[…]
VII – quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício
daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação.
A questão que demanda nosso estudo é “até onde o fisco pode ir em busca de
verificação de dolo, fraude ou simulação”? E ainda, do quê, em qual ato e a qual momento o
dispositivo está se referindo.
Antecipamos nosso posicionamento e, em seguida, apresentaremos as
premissas que nos guiaram…advogamos pela ideia que o fisco tem como limite do
procedimento de lançamento de ofício os casos em que o fato gerador tenha
ocorrido de maneira inequívoca, ou seja, verificável seu amoldamento à hipótese de
incidência, sem depender da análise de elementos subjetivos.
Se o caso em análise depender de alguma cognição, à menor que seja, acerca da
ocorrência ou não do fato gerador, o procedimento em tela é absolutamente nulo e eventual
cobrança tem natureza de confisco.
Para chegarmos a essa conclusão, partimos das seguintes premissas:
III – Primeira Premissa: O conceito de Tributo Consentido
A baliza maior em uma análise tributária deve estar na certeza de que nosso
ordenamento jurídico, assim como de todo Estado democrático de direito, se baseia no
conceito do Tributo Consentido. E não é consentimento apenas para a instituição de tributos,
mas para todas as ações tributantes.
Por esse conceito, no Brasil só se admite a existência de tributo que tenha havido o
consentimento do povo para que ele exista. Esse consentimento é dado através dos
representantes desse povo, desde sua reunião em uma assembleia constituinte até as casas
legislativas em que se formam as normas instituidoras e regulamentadoras dos tributos.
Não se pode jamais acreditar que a relação tributária seja uma espécie de direito do
ente político que arrecada o tributo… a relação tributária é um ato de violação patrimonial do
indivíduo. Uma violação que sim, acontece em prol do bem estar social, mas que, ainda
assim, não deixa de ser uma violação de uma garantia constitucionalmente assegurada.
Aliás, uma garantia individual tratada em pé de igualdade com a liberdade, através do art. 5o,
LIV da Lei Maior.
Art. 5o, LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal.
Repise-se que é uma violação necessária, em benefício de todos, para o sustento do
Estado e do bem estar social. Mas, ainda assim, é uma violação e, justamente por isso, há
de ser sempre consentida e jamais admitida que se emane da mera ilação (uma tese) do
ente político e seus agentes.
Nossa doutrina tributária mais tradicional enfoca a idéia do consentimento sob o
prisma do princípio da Legalidade.
Com todo respeito aos gigantes da doutrina aos quais eu jamais conseguiria produzir
esse estudo se não fossem seus ensinamentos, mas honestamente eu penso que existe
uma relação de causa e efeito que fica esquecida quando reduzimos o conceito ao princípio
da legalidade.
Falar apenas de princípio da legalidade parece que nosso legislador constituinte fez
apenas uma escolha de mero formalismo para que haja uma lei instituidora dos tributos e das
relações jurídicas entre os sujeitos da obrigação tributária. Em meu sentir, isso deixa o real
propósito da Legalidade menos aparente, que é: o tributo advém da Lei porque a Lei é feita
pelo Povo, é esta a manifestação de seu consentimento.
Nesse sentido, Antonio Roque Carraza leciona que:
I – O princípio da legalidade é uma das mais importantes colunas
sobre as quais se assenta o edifício do direito tributário. A raiz de todo
ato administrativo tributário deve encontrar-se numa norma legal, nos
termos expressos do art. 5°, II, da Constituição da República.
Muito bem. Bastaria este dispositivo constitucional para que
tranquilamente pudéssemos afirmar que, no Brasil, ninguém pode ser
obrigado a pagar um tributo ou a cumprir um dever instrumental tributário
que não tenham sido criados por meio de lei, da pessoa política
competente, é óbvio. Dito de outro modo, do princípio expresso da
legalidade poderíamos extrair o princípio implícito da legalidade
tributária.
Mas o legislador constituinte, empenhado em acautelar direitos
dos contribuintes, foi mais além: deixou estampada esta ideia noutra
passagem da Carta Magna, nomeadamente em seu art. 150, I (sem
prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou
aumentar tributo sem lei que o estabeleça).
Portanto, o princípio da legalidade teve sua intensidade reforçada,
no campo tributário, pelo art. 150, I, da CF. Graças a este dispositivo, a
lei – e só ela – deve definir, de forma absolutamente minuciosa, os tipos
tributários. Sem esta precisa tipificação de nada valem regulamentos,
portarias, atos administrativos e outros atos normativos infralegais: por si
sós, não têm a propriedade de criar ônus ou gravames para os
contribuintes”
(CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário.
- ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 275).
Justamente por ser uma violação consentida, que a própria Constituição estabelece
claras limitações para esse consentimento, especialmente aquelas contidas nos art. 150 e
151 da Constituição.
Mas também vemos diversas normas infraconstitucionais que reforçam o conceito e
trazem limitações inafastáveis.
O Código Tributário Nacional, logo em seu artigo 3o, quando define tributo, o legislador
fez questão de não se limitar ao conceito do que é tributo, mas de inserir desde logo uma
limitação ao Estado, evidenciando que a cobrança do Estado só pode ser feita “mediante
atividade administrativa plenamente vinculada”.
Art. 3o Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou
cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito,
instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente
vinculada.
Atividade administrativa vinculada é aquela que segue um rito legal, ou seja, está
vinculado com uma determinada forma de fazer, prevista em lei. Em resumo, atividade
vinculada significa dizer que esta atividade deve ser realizada mediante uma forma prescrita
na norma.
Esta é uma forma muito clara do legislador apontar o dedo ao administrador público e
dizer: não invente, não teorize, não crie, não inove, APENAS FAÇA ASSIM!
Note-se que o legislador não falou de “atividade administrativa vinculada”, mas de
“PLENAMENTE vinculada”, o que enseja uma inafastável mens legis que não existe
cobrança de tributo distanciada de norma específica.
Esse é um limite de consentimento para que o Estado pratique a violação ao
patrimônio do indivíduo. Em outras palavras compondo todo o arcabouço do conceito de
tributo consentido, ao princípio da legalidade soma-se o princípio da anterioridade da norma
tributária ou o “princípio da não-surpresa”, ou seja, não somente o tributo deve ser
consentido, como também deve estar claramente previsto, para que então possa haver o fato
gerador.
E no Direito Tributário impera o rol numerus clausus, não devendo deixar margem
para discricionariedade do agente público, que não pode exceder ou ampliar o alcance da
norma, já que esta deve ser prevista e consentida para que seja válida.
Outro excelente exemplo da entrega ao agente público de uma discricionariedade
altamente limitada e, principalmente, vinculada, está no §1o do art. 108 do CTN. Na medida
em que o inciso I deste artigo entrega à autoridade fiscal o poder de fazer uso da analogia na
ausência de norma tributárias específica, o §1o limita o uso dessa analogia quando resultar
na exigência de tributo não previsto em lei.
Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente
para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem
indicada:
I – a analogia;
[…]
§ 1o O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo
não previsto em lei.
A título de exemplo, introduzimos uma certa “provocação”, no melhor dos sentidos,
obviamente:
Manoel é detentor de 10.000 quotas do capital social de uma sociedade
limitada e cede suas quotas a João mediante pacto de compra e venda.
No entanto, João jamais fez qualquer pagamento para Manoel. Tudo o
que existe é um contrato de compra e venda, um instrumento.
Nos termos do art. 195 do CTN, inserido em Título IV, Capítulo I, que regula e
parametriza a atividade fiscalizatória, é lícito à administração pública exigir documentos que,
ao lado dos instrumentos instituidores dos negócios ou atos jurídicos, lhes completem para
conferir eficácia à forma retratada.
Art. 195. Para os efeitos da legislação tributária, não têm aplicação
quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de
examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos
comerciais ou fiscais, dos comerciantes industriais ou produtores, ou da
obrigação destes de exibi-los.
Quando você olha essa norma numa distância maior, dentro do espectro do tributo
consentido, você enxerga que não é uma permissão ao fisco para ser xereta, mas para
analisar os documentos que, em conjunto, formam os elementos do fato gerador.
No exemplo, o tipo de negócio jurídico celebrado por Manoel e João não se exaure no
próprio contrato porque a Lei Civil (que regula esse negócio jurídico) estabelece uma
comutatividade de obrigações. Veja:
Código Civil, art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos
contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a
pagar-lhe certo preço em dinheiro.
O contrato de compra e venda só ingressa no plano de validade do negócio jurídico se
(e apenas se) dois fatos acontecerem: de um lado a transferência do domínio da coisa
vendida; e de outro o pagamento do preço certo em dinheiro.
Por isso, nos parece que poderia sim o Fiscal do Estado exigir a apresentação do
efetivo pagamento.
E não é para sopesar a vontade das partes e a congruência da forma com a intenção,
mas para checar se o contrato que documenta a forma eleita chegou a trazer aquela relação
jurídica de compra e venda para o plano de validade.
Uma vez constatada pela autoridade fiscal a inexistência de pagamento de João a
Manoel, apesar de existir um documento apontando para a compra e venda, dada a ausência
da comutatividade exigida pela norma, nos parece razoável concluir que a transferência de
patrimônio tenha se operado por ato de mera liberalidade daquele que figurava no papel
como “vendedor”, de sorte que o FATO que realmente aconteceu se enquadra em outro tipo
contratual, mormente o descrito no art. 538 do Código Civil.
Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por
liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de
outra.
Neste exemplo, não há necessidade de uma demonstração de intenção das partes, de
analisar propósito negocial, de verificar a congruência entre a forma e o substrato, nada
disso, absolutamente nenhuma atividade cognitiva se faz necessária para se verificar a
ocorrência do fato gerador da doação.
O FATO gerador da obrigação tributária realmente ocorreu. E ocorreu com inexistência
de declaração por parte do contribuinte, de sorte que aqui sim está autorizada a autoridade
fiscal a proceder o lançamento de ofício em face à ausência de declaração.
Não houve sequer simulação no negócio jurídico celebrado entre as partes. O negócio
jurídico absolutamente válido e regular apenas não se aperfeiçoou pelo descumprimento de
sua condição de validade.
No entanto, foi a conduta (omissiva: transferência de patrimônio sem pagamento do
preço pelo comprador e sem a cobrança ou desfazimento do negócio pelo vendedor) de seus
pactuantes que fez a relação jurídica se moldar a outra forma prevista na norma e esta ser
tipificada como fato gerador de um tributo, a doação.
Neste caso, a autorização dada à autoridade fiscal para o lançamento de ofício em
nada tem a ver com simulação, mas reside no inciso V do art. 149 combinado com o art. 150,
ambos do CTN, na ausência do pagamento e submissão à homologação.
Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade
administrativa nos seguintes casos:
V – quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa
legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo
seguinte;
[…]
Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos
cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o
pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se
pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da
atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.
Bastante diferente é o caso em que houve a compra e venda nos termos da Lei Civil,
ou seja, houve a transferência do domínio da coisa mediante o pagamento de um preço
ajustado entre as partes e a fazenda busca descortinar este negócio jurídico, dizer que há
uma real intenção diversa da pactuada pelas partes e sobre esta imputar a ocorrência de um
fato gerador que, até então estava dissimulado pelo negócio jurídico questionado.
Para tanto, devemos considerar outras premissas…
IV – Segunda Premissa: A sequência sistemática da obrigação tributária
O Código Tributário Nacional, por óbvio, não é composto por um amontoado de
dispositivos espalhados de maneira aleatória. Ao revés disso, ele revela uma sistemática,
com uma construção estruturada e em conformidade com o sistema tributário inaugurado na
Constituição Federal.
Dessa maneira, o Livro Segundo, que trata das Normas Gerais de Direito Tributário,
traz em seu Título II a figura da Obrigação Tributária.
Neste título, o Capítulo I, de Disposições Gerais, inicia pelo art. 113, §1o, que fixa o
nascedouro da obrigação tributária principal na ocorrência do fato gerador.
Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
§ 1o A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem
por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e
extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.
Adiante, o Capítulo II vai tratar especificamente do Fato Gerador, definido-se como:
Art. 114. Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei
como necessária e suficiente à sua ocorrência.
O Título seguinte (III) vai disciplinar o Crédito Tributário, estabelecendo-se no art. 139
que este decorre da obrigação tributária principal.
Art. 139. O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a
mesma natureza desta.
Prosseguindo, o Capítulo II deste Título III regula a Constituição de Crédito Tributário,
deixando sua Seção I para descrever as regras do Lançamento.
Note-se que a obrigação do contribuinte se dirigir ao ente político para efetuar o
pagamento do tributo depende, então de toda essa sequência lógica que, termina com o
lançamento, já que é uma espécie de procedimento administrativo de “conclusão”, pois ele:
- verifica a ocorrência do fato gerador;
- determina a matéria tributável;
- calcula o montante do tributo devido; e
- identifica o sujeito passivo.
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o
crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento
administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da
obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o
montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso,
propor a aplicação da penalidade cabível.
E, por fim, vem o momento principal dessa sequência que é o pagamento do tributo
pelo contribuinte, que está disciplinado no art. 160.
Art. 160. Quando a legislação tributária não fixar o tempo do pagamento,
o vencimento do crédito ocorre trinta dias depois da data em que se
considera o sujeito passivo notificado do lançamento.
Essa análise nos revela que existe uma linha ordenada de acontecimentos a ser
seguida:
1o) o fato gerador acontece e nasce a obrigação tributária (art. 113, §1o)
2o) surge o crédito tributário (art. 139)
3o) constitui-se o crédito tributário pelo lançamento (art. 142)
4o) o contribuinte paga o tributo (art. 160)
Visualmente, podemos mostrar assim:
Destarte, a ocorrência de um fato gerador é uma condição sine qua non para que,
primeiro, a obrigação tributária surja e, a partir daí decorra o crédito tributário e,
consequentemente, o lançamento para que este crédito possa ser constituído.
Eventualmente, como é o caso do ITCMD, a lei atribui o pagamento antecipado.
Todavia, esta relação com o Estado só se aperfeiçoará se toda a sequência vier a ser
realizada.
Por exemplo: uma pessoa paga pelo ITCMD porque receberá a doação de um imóvel
de seu pai, mas no dia anterior à celebração da escritura pública, o pai vem a falecer. É
direito dessa pessoa pedir a restituição do valor que antecipou porque o fato gerador não
aconteceu e, por conseguinte, não há crédito e tampouco lançamento a ser feito (por
homologação).
Dessa sequência sistemática se extrai que o lançamento não é procedimento
adequado para se apurar a validade dos atos e negócios jurídicos que dão origem ao fato
gerador porque, pelo contrário, o lançamento depende da prévia e inequívoca existência do
fato gerador a ser verificado para que o procedimento exista.
Se, logo no início do procedimento (verificação da ocorrência do fato gerador), este
não se mostra evidente, o lançamento tem uma condição de prosseguimento que não foi
alcançada. E não custa dizer o óbvio, que o prosseguimento do procedimento em
desatenção a esta condição de validade procedimental resulta em um ato de confisco, pois
afronta o princípio do devido processo legal.
Adotamos, agora, um outro exemplo… aliás, exemplo que fizemos questão de
enquadrar na “Situação No 3”, mencionada a partir 14 minutos e 11 segundos do vídeo oficial
do Governo do Estado de São Paulo apresentado no YouTube
(https://youtu.be/81xWxbx36sA) em 21/05/2024 por ocasião do início dos trabalhos da
Operação Loki:
Izabel possui 100% das quotas do capital social de uma
sociedade limitada, cujo patrimônio líquido é de R$ 1 milhão. Izabel
vende a totalidade de suas quotas para Maria por R$ 10.000.
Segundo o entendimento da autoridade fiscal estadual, esse seria
um “valor módico”, porque é um montante muito aquém do valor
patrimonial das quotas.
Pretende, então, a autoridade fiscal realizar o lançamento de
ofício por enxergar que existe simulação nesta operação, que a compra
e venda, apesar de ter ocorrido e se aperfeiçoado, serviu para dissimular
a ocorrência do fato gerador (a doação).
Diferente do exemplo anterior, neste caso houve transferência de patrimônio e a
contraprestação efetivamente prestada, em dinheiro. O fato da vida real que aconteceu, ATÉ
QUE SE PROVE O CONTRÁRIO, foi uma compra e venda.
É um fato, uma verdade, que houve comutatividade de obrigações. Esta
comutatividade, per si, já é um eliminador inequívoco (por análise imediata) da existência de
transferência patrimonial a título não oneroso, por mero ato de liberalidade.
Contudo, pretende a autoridade fiscal extrair a “verdade real”, ou seja, fazer uma
análise mediata, mais aprofundada da real vontade das partes, a fim de verificar a
congruência desta vontade interna das partes e a vontade manifestada.
Assim (e somente assim), seria possível enxergar se aquele negócio jurídico de
transferência onerosa, perfeitamente exaurido em termos de direito privado, teria servido
para dissimular a ocorrência do fato gerador da doação.
A transferência de patrimônio se deu a título oneroso, mediante contraprestação em
dinheiro e não resta dúvida quanto a isso.
Para que haja tributação decorrente de doação, assim também precisa ser a
afirmação sobre o evento tributante, a transferência gratuita, sem contraprestação, por mera
liberalidade.
Trata-se de uma afirmação que não cabem duas verdades, não cabem interpretações
distintas, pois é elemento constituinte da obrigação tributária, é condição sem a qual não
pode o Estado violar o patrimônio do indivíduo, sob pena de confisco.
Sobre fatos (especialmente o fato gerador, assim visto como o acontecimento do
mundo real que se amolda à hipótese de incidência prevista em lei e faz nascer a obrigação
tributária) não pode restar dúvida, sob pena de termos um sistema tributário de barbárie,
típico dos Estados absolutistas e não admissível no Estado democrático de direito.
No entanto, nos casos em que o fato gerador foi dissimulado de alguma forma, ele
não está aparente, entendemos que o procedimento do Lançamento não é o ato apropriado
para a revisão desse negócio jurídico ou do fato aparente, sobretudo porque em nosso
sistema tributário existe uma regra específica para isso, e que abordaremos na sequência.
Dessa maneira, a autoridade fiscal não poderia sopesar a validade do negócio
jurídico, questionando o ato por simulação para eventualmente desconsiderá-lo porque, em
sede de procedimento de lançamento, estaria invadindo a competência do procedimento
previsto na norma para análise de ocorrência de fato gerador supostamente dissimulado pelo
contribuinte.
O lançamento demanda, necessariamente, um fato gerador já ocorrido e de maneira
inconteste. Se a autoridade fiscal carece de praticar um ato de análise prévio, este ato não
se dá no lançamento.
V – Terceira Premissa: O sistema tributário prevê momento e procedimento
apropriados
Há mais de 20 anos (em 2001), o Código Tributário Nacional teve uma alteração na
qual foi inserido o parágrafo único no art. 116, com a seguinte redação:
Art. 116, Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá
desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de
dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos
elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os
procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Imediatamente, o novo dispositivo foi alvo de uma Ação Direta de Constitucionalidade
(ADI 2446) proposta pela Confederação Nacional do Comércio e jamais teve sua eficácia
suspensa por qualquer medida cautelar. Ou seja, encontra-se em plena vigência há mais de
20 anos.
Em 2022 (21 anos depois), foi proferido o julgamento de mérito, no qual a relatoria da
Ministra Carmen Lúcia entregou uma abordagem lúcida e sistêmica ao acórdão. Há de se
notar que, apesar da decisão ser de improcedência da ADIN, as balizas estabelecidas
entregaram tanta clareza e segurança que o acórdão transitou em julgado imediatamente,
sem haver nem mesmo Embargos de Declaração.
No acórdão, o STF foi categórico ao afirmar que era um equívoco o nome dado na
exposição de motivos do anteprojeto de lei complementar do poder executivo federal, de
Norma Geral Antielisiva.
Em sentido oposto, o STF afirmou que a elisão fiscal é o planejamento tributário
regular, que é lícito ao contribuinte buscar todos os meios legais para evitar a
ocorrência do fato gerador.
Destarte, o Estado brasileiro há mais de 20 anos possui um sistema específico,
validado pela sua Suprema Corte, para que fatos geradores não ocorridos no mundo real em
razão da existência de um ato ou negócio jurídico criado com a finalidade de dissimulá-lo
possam ser havidos como ocorridos, a partir da desconsideração desse ato ou negócio
jurídico.
Com base nesta premissa, concluímos que o Lançamento não seria o espaço
apropriado para o procedimento fiscalizatório do exemplo. O lançamento pressupõe um fato
gerador efetivamente ocorrido, inconteste.
Se existe a pretensão fiscalizatória de se atribuir como ocorrido um fato gerador que
não se materializou no mundo real porque foi dissimulado pela presença de um negócio
jurídico regular que o afastou, este negócio jurídico precisa ser, primeiramente,
desconsiderado para então (e só então) poder se chegar ao fato gerador ora dissimulado,
exatamente como demanda a norma do art. 116, parágrafo único do CTN.
Mas o procedimento específico ainda não existe. O que faz o fisco, fica no prejuízo
enquanto isso? Deixa passar algo que (na opinião de alguns, ou até de muitos, não importa)
que está na cara que é uma doação disfarçada?
Para isso, precisamos avançar em mais uma premissa…
VI – Quarta Premissa: Deve ser respeitada toda escolha do POVO, ainda
que pela “inércia negativa”.
A decisão do STF na ADI 2446 consignou claramente que o trecho final do art. 116,
parágrafo único do CTN prevê a criação de um procedimento administrativo tributário
específico para que a autoridade fiscal realize esse exercício de sopesar a validade de atos e
negócios jurídicos para fins tributários e que, no entanto, até hoje, 23 anos depois, essa
norma ainda não foi criada.
De lá para cá, não houve uma, mas duas tentativas de criação da norma
procedimental específica e ambas vieram do próprio poder executivo, através de Medidas
Provisórias, e foram sumariamente rejeitadas pelo povo, através de seus representantes
eleitos com a função de legislar.
A primeira tentativa veio logo após a aprovação do novo dispositivo, através da
Medida Provisória 66/2002. No entanto, o processo administrativo específico ali previsto foi
revogado quando da conversão da MPV na Lei 10.637/2002.
Mais de uma década depois, foi a vez da Medida Provisória 685/2015, no qual o
processo administrativo previsto em seus doze primeiros artigos foi removido do texto final
quando da conversão na Lei 13.202/2015.
Veja o que disse o STF:
A plena eficácia da norma depende de lei ordinária para
estabelecer procedimentos a serem seguidos.
A Medida Provisória n. 66/2002 regulamentaria, em seus arts. 13
a 19, o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, tendo
sido, entretanto, excluídos quando da conversão na Lei n. 10.637/2002.
Em 2015 o tema voltou a ser tratado nos arts. 1o a 12 da Medida
Provisória n. 685, dispositivos suprimidos quando da conversão da
medida na Lei n. 13.202/2015.
Assim, o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional
pende, ainda hoje, de regulamentação.
Com base na análise histórica retratada alhures (lei criada há mais de 20 anos,
prevendo uma lei ordinária que nunca foi criada e com duas tentativas de edição por parte do
poder executivo rechaçadas pelos representantes do povo), podemos afirmar que não há
uma lacuna legislativa.
Ao contrário, existe uma literal manifestação de vontade por meio de “silêncio
eloquente” do próprio povo, através de seus representantes legislativos, de não desejar
trazer a norma do art. 116, parágrafo único do CTN à eficácia plena (ao menos por hora).
“Ah, mas isso está errado!”. Bom… essa é uma opinião e deve ser respeitada. Mas
também devem ser respeitadas as regras do jogo democrático, especialmente as regras do
sistema tributário nacional.
Essa inércia legislativa faz parte desse “jogo democrático” norteador de um sistema
que adota o conceito de tributo consentido. Enquanto o povo não consente com a edição da
norma específica, não cabe ao poder público usar subterfúgios em seu lugar.
E aqui cabe um convite à reflexão:
Se um ato inapropriado colocado no lugar de um fato gerador de um
tributo é algo a ser combatido, deveria ser combatido pelo próprio
administrador público querer utilizar um ato inapropriado (lançamento)
para cobrir aquilo que realmente desejava fazer e a lei não lhe permite
(desconsideração de negócio jurídico que dissimula a ocorrência de um
fato gerador)?
O procedimento que tornaria o ato da fiscalização estadual “plenamente vinculado”,
para que o tributo pudesse ser cobrado à luz do art. 3o do CTN, simplesmente não existe. E
não existe por uma manifestação comissiva de vontade do próprio povo, que rejeitou os
procedimentos contidos na MPV 66/2002, depois o da MPV 685/2015 e jamais criou outro
em seu lugar.
VII – Informações Oficiais sobre a Operação Loki
Trazidas as premissas, vamos à análise do que se observa na Operação Loki, criada
pela UGC ITCMD, que é a Unidade Gestora Centralizada, um departamento da Secretaria de
Fazenda do Estado de São Paulo, responsável pela fiscalização do ITCMD.
In limine, informo ao leitor que restaram frustradas minhas tentativas de alcançar
algum ato específico que tenha inaugurado a referida informação. E não que precise, de
certo, o lançamento tributário é um ato próprio da atividade fiscalizatória e não carece de
qualquer ato normativo para isso.
Todavia, ao observarmos todo o contexto que consta no vídeo informativo já
mencionado, com a fixação de teses interpretativas por parte da administração,
considerarmos que fosse de bom alvitre que tais balizas fossem objeto sim de algum ato
instituidor para que pudesse o contribuinte enxergar que teses e entendimentos são esses do
órgão fiscalizador, já que não emanam de disposição literal de lei, nem que fosse em respeito
ao princípio da publicidade, que norteia a administração pública.
Diante do mínimo de publicidade existente, um vídeo no YouTube, temos as seguintes
informações:
Objetivo: identificar doações de títulos representativos do capital
social de empresas.
Motivação: vídeos no Youtube e no Instagram de pessoas
vendendo alguns planejamentos tributários que a secretaria da fazenda
considera como abusivos porque esses planejamentos vendem a ideia
de que é possível fazer a transmissão de bens a título gratuito para os
filhos simulando um contrato de compra e venda (seja com uma compra
e venda sem pagamento, seja por meio do pagamento de um valor
módico).
Indícios: 1) grau de parentesco entre os sócios que estão saindo
e os que estão entrando; 2) falta de declaração de ITCMD; 3) falta de
lastro patrimonial do adquirente das participações societárias para estas
adquirir.
A partir do minuto 8:50, o vídeo retrata “algumas situações possíveis” para o
enquadramento da fiscalização na Operação Loki, a saber:
1a Situação: doação declarada, mas sem pagamento do imposto
2a Situação: compra e venda sem pagamento do preço
3a Situação: compra e venda com preço módico
4a Situação: há comprovação da onerosidade, mas não da origem do
dinheiro
5a Situação: há comprovação da onerosidade, há prova da origem do
dinheiro
Por eliminação, acerca das situações 1 e 2, não vamos adentrar, pois trouxemos até o
primeiro exemplo em que vemos razoabilidade na cobrança pelo fisco, pois efetivamente o
fato gerador do ITCMD ocorreu. No que tange à situação, também consideramos um absurdo
e extrapolação de competências do fisco estadual, mas nos reservamos a tratar do tema em
um segundo momento, pois merece um estudo específico da matéria. A Situação 5 é a
própria regularidade e não há qualquer discussão a ser feita. Nos cabe, então, analisar a 3a
Situação.
Antes de iniciarmos, merecem destaques três pontos: o apontamento de crime contra
a ordem tributária; as menções doutrinárias; e as menções jurisprudenciais. Trataremos de
cada um deles:
VIII – Apontamento de crime contra a ordem tributária
Na abordagem da Situação 3, o vídeo declina que o contribuinte poderia se ver
incurso no crime do art. 2o da Lei 8.137/1990 (Crime contra a Ordem Tributária), a saber:
Art. 2o. Constitui crime da mesma natureza:
I – Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou
fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de
pagamento de tributo.
Nos causa profunda indignação assistir administradores públicos se dirigindo à
sociedade dizendo que estão combatendo um determinado movimento de planejamento
tributário, elaborado por profissionais da área mas que, segundo o entendimento da
secretaria de fazenda, tais procedimentos seriam abusivos e que, as condutas podem ser
enquadradas como crime.
Não, não podem. E o tom de ameaça é bem ruim para o debate de ideias. É como se
terminássemos o presente estudo com o dedo em riste, apontado para o administrador
público e dizendo que o contrário seria excesso de exação.
Afirmamos categoricamente que o contribuinte não estaria incurso em crime algum,
nem mesmo com elementos para propositura de ação penal, pelos motivos que estão no
próprio vídeo:
A) O tipo penal em questão tem como sujeito ativo o contribuinte. Portanto, se a
própria operação retrata que verificou a existência de um serviço profissional de
planejamento tributário, o agente que articulou as ideias que (ainda que por absurdo) se
enquadrassem na descrição do tipo seria pessoa diversa do contribuinte, que é o cliente.
B) O tipo penal tem como elemento subjetivo o dolo específico, a vontade livre e
consciente de empregar uma fraude para se eximir de pagar tributo. Portanto, este dolo não
dá para ser imputado ao cliente, pois o crime em nada tem a ver com o beneficiário da
sonegação, mas com o agente que realiza a conduta em vontade livre e consciente. Nesse
sentido, merece destaque o estudo do professor Hugo de Brito Machado, que citando Nelson
Hungria, menciona:
Nelson Hungria afirma que o reconhecimento de um crime exige
que se tenha presente “uma relação subjetiva ou de causalidade
psíquica vinculando o fato ao agente (culpabilidade, culpa sensu lato)”. E
esclarece:
“O agente deve ter querido livremente a ação ou omissão e o
resultado (dolo), ou, pelo menos, a ação ou omissão (culpa stricto
sensu). Ainda mais: é indispensável que o agente tenha procedido com a
consciência da injuricidade ou ilicitude jurídica da própria conduta (crime
doloso) ou com inescusável inadvertência quanto ao advento do
resultado antijurídico […]. O direito penal moderno repeliu a chamada
responsabilidade objetiva.” (Nelson Hungria, Comentários ao Código
Penal, 4a edição, Forense, Rio de Janeiro, 1958, v. I, t. II, p. 25. In
“Crimes Contra a Ordem Tributária de Hugo de Brito Machado”, edição
Kindle: https://amz.onl/dvc36gN)
C) Outrossim, ainda que a pessoa esteja realizando o planejamento para si própria, o
próprio vídeo que revela a motivação da operação diz se tratar de um planejamento tributário
que, na visão da secretaria de fazenda, é abusivo. Logo, para o profissional que o está
realizando, se trata de uma construção lícita, no exercício regular de sua liberdade de
pensamento e que não guarda nenhuma disposição de lei em contrário e tampouco na
jurisprudência. Primeiro, a opinião da administração pública deveria passar a ser reconhecida
em lei própria sobre o tema ou, no mínimo em súmula vinculante, para que só então ao
profissional que esteja realizando o planejamento possa ser apontada uma prática delituosa.
Deveras importante é concluir com as palavras de Aníbal Bruno:
No dolo, o indivíduo sabe o que quer e decide realizá-lo, consciente de
que o seu querer é ilícito. Deste momento psicológico passa o agente
a realização no mundo exterior, e só então penetra no domínio do Direito
Penal. A simples vontade ilícita, sem manifestação externa, é indiferente
para o Direito. O dolo é, portanto, representação e vontade em
referência a um fato punível, que o agente pratica sabendo ser o mesmo
ilícito.
(BRUNO, Aníbal. Direito Penal, 2a edição, Forense, Rio de Janeiro,
1959, t. 2, p. 60)
IX – Menções doutrinárias
Na exposição da Situação 3 no referido Vídeo de apresentação da Operação Loki, são
expostos alguns posicionamentos doutrinários sobre tão somente para conceituar a
simulação. A saber:
Ela se caracteriza por um desacordo intencional entre a vontade interna
e a declarada, no sentido de criar, aparentemente, um ato jurídico que,
de fato, não existe, ou então oculta, sob determinada aparência, o ato
realmente querido
(Monteiro, W. B, Curso de Direito Civil, Editora Saraiva, edição 2005)
Uma simulação é uma declaração enganosa da verdade, visando a
produzir efeito diverso do ostensivamente indicado.
(Beviláqua, Clóvis)
O que dá origem à simulação é a vontade que o anima e a função que
desempenha: a criação da ilusão negocial. Cumpre diferenciar a
aparência que os simuladores criam (o “negócio aparente”), do negócio
simulado, que dela se reveste. A apreensão da essência da simulação
pressupõe a assimilação do mecanismo próprio da ilusão negocial.
(Andrade Jr., Luiz Carlos de, in A simulação no Código Civil, tese de
doutorado, USP, 2014)
Doação disfarçada: é aquela que encobre um negócio jurídico simulado
ou em fraude à lei. Uma doação com aparência de ato jurídico diverso.
Exemplo: simulação de contrato de compra e venda por pessoa casada
que visa, em verdade, mascarar uma doação.
(MENDONÇA, Manuel Inácio Carvalho de.)
De todas as citações apresentadas, o que vemos de mais interessante é o fato de não
haver uma sequer que guarde a mínima correlação fática sobre a referida Situação 3
apresentada no vídeo, se prestando apenas à conceituação mesmo do que viria a ser
situação.
Mas também há de se observar que, fundamentado nesses conceitos, de fato,
pretende mesmo a autoridade administrativa perseguir o ato de compra e venda para
desqualificá-lo como tal por ser simulado e em seu lugar estabelecer a doação, fato gerador
do ITCMD.
Repetimos, não basta que a autoridade administrativa tenha boa intenção e nem
mesmo razão jurídica em seus propósitos. Aqui, sequer adentraremos a esta análise de
mérito. Estamos aqui no campo das formas, se elas estão ou não sendo respeitadas.
E, mais uma vez, fica evidente que o que pretende a autoridade administrativa é
mesmo a desconsideração do negócio jurídico de compra e venda porque este estaria
dissimulando a ocorrência da doação. Dentro da atuação vinculada prevista no art. 3o do
CTN, o Lançamento não é o meio apropriado para isso, mas o procedimento específico do
art. 116, parágrafo único, que jamais foi criado.
No entanto, dentro da construção doutrinária encontramos ainda mais elementos que
contrariam a pretendida atuação do fisco. Para tanto, mencionaremos algumas passagens da
obra do Professor Flávio Tartuce (In Manual de direito civil: volume único. 13. ed., Rio de
Janeiro: Método, 2023 – versão Kindle em: https://amz.onl/0Sql1yv) que, em nosso sentir,
teve um trabalho mais acurado de observar o maior volume de pensamentos doutrinários
diferentes, não apenas para construir seu raciocínio, mas para apresentar ao leitor uma visão
honesta dos diversos posicionamentos existentes.
Comecemos pela conceituação:
2.5.5.6 Da simulação.
[…] na simulação há um desacordo entre a vontade declarada ou
manifestada e a vontade interna. Em suma, há uma discrepância entre a
vontade e a declaração; entre a essência e a aparência.
[…]
Na simulação, as duas partes contratantes estão combinadas e
objetivam iludir terceiros. Como se percebe, sem dúvida, há um vício de
repercussão social, equiparável à fraude contra credores, mas que gera
a nulidade e não anulabilidade do negócio celebrado, conforme a
inovação constante do art. 167 do CC.
Agora, vejamos a abordagem do Autor sobre a possibilidade de subsistir o negócio
jurídico desejado pelas partes e que está encoberto pelo negócio jurídico simulado. Trata-se
exatamente do que pretende a autoridade administrativa, ver a compra e venda declarada
nula, subsistindo a doação, que foi o negócio jurídico supostamente pretendido.
Como foi destacado, o art. 167 do CC/ 2002 reconhece a nulidade
absoluta do negócio jurídico simulado, mas prevê que subsistirá o que se
dissimulou, se válido for na substância e na forma. O dispositivo trata da
simulação relativa, aquela em que, na aparência, há um negócio; e na
essência, outro. Dessa maneira, percebe-se na simulação relativa dois
negócios: um aparente (simulado) e um escondido (dissimulado).
Eventualmente, esse negócio camuflado pode ser tido como válido, no
caso de simulação relativa.
Mas veja que o Autor diz que não se trata de uma regra o negócio jurídico dissimulado
ser tido como válido, mas pode ser! Nesse sentido, se faz necessária a análise da reserva
mental das partes, instituto contido no art. 110 do Código Civil, a saber:
Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja
feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o
destinatário tinha conhecimento.
Vejamos a Análise do Professor Flávio Tartuce:
A reserva mental ou reticência essencial, prevista no art. 110 do
CC, quando ilícita e conhecida do destinatário, é vício social similar à
simulação absoluta, gerando a nulidade do negócio jurídico. Aqui, é
interessante transcrever o inteiro teor do comando em questão: “A
manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a
reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o
destinatário tinha conhecimento”. A redação é complicada, até de difícil
compreensão, distante da operabilidade que orienta o Código Civil de
2002.
Sobre esse conceito, anotam Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz
Delgado que “entende-se por reserva mental a emissão intencional de
uma declaração não querida em seu conteúdo. Se o declarante diz o que
não pretende e o destinatário não sabia que o declarante estava
blefando, subsiste o ato. Na hipótese inversa, quando o destinatário
conhecia o blefe, é óbvio que não poderia subsistir o ato, uma vez que
ambas as partes estavam sabendo que não havia intenção de produzir
efeitos jurídicos. O destinatário não se enganou, logo não poderia querer
obrigar o declarante, quando sabia que aquela não era a sua
manifestação de vontade”. (ALVES, Jones Figueirêdo; DELGADO, Mário
Luiz. Código Civil anotado. São Paulo: Método, 2005. p. 82)
Resumindo, a reserva mental opera da seguinte forma:
– Se a outra parte dela não tem conhecimento, o negócio é válido.
– Se a outra parte conhece a reserva mental, o negócio é nulo,
pois o instituto é similar à simulação.
O autor da presente obra está filiado ao entendimento pelo qual a
reserva mental ilícita gera nulidade absoluta do negócio, como quer
Maria Helena Diniz (In Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva,
2010. p. 154) e Sílvio de Salvo Venosa (In Código Civil interpretado. São
Paulo: Atlas, 2010. p. 122).
E aí, analisemos o art. 167 do Código Civil:
Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se
dissimulou, se válido for na substância e na forma.
O que a autoridade administrativa pretende, ainda que pudesse fazê-lo por
lançamento, é que o art. 167 do código civil encerre na palavra “dissimulou”. Para que o ato
da doação (o ato supostamente dissimulado) pudesse subsistir, este precisaria ser válido na
forma e na substância e, nesse caso, a substância estaria maculada pelo conluio das partes,
de sorte que o limite da sanção seria a declaração de nulidade do negócio jurídico da compra
e venda, sem subsistir a doação, logo não haveria qualquer tributo a ser recolhido.
Engraçado é que depois de dito, parece tão óbvio… como pode alguém receber uma
doação simulada (em conluio com o doador) e sua única sanção seria “perder” 4% para os
cofres públicos. Isso é mesmo razoável?
Por fim, também destaca-se do estudo do professor Flávio Tartuce a análise da
competência para declarar a nulidade da simulação:
Em todos os casos, não há a necessidade de uma ação
específica para se declarar nulo o ato simulado. Assim, cabe o seu
reconhecimento incidental e de ofício pelo juiz em demanda que trate
de outro objeto.
Não se pode confundir o poder de fiscalização (cobrar o tributo mediante atividade
plenamente vinculada – art. 3o do CTN) e o poder de autotutela administrativa (Súmula 473
do STF) com o exercício arbitrário da autotutela.
Logo, não cabe ao administrador público reconhecer uma nulidade, trata-se de ato
privativo do poder judiciário. Aliás, essa é a ressalva final da mencionada Súmula 473 do
STF, a saber:
Súmula 473 do STF – A administração pode anular seus próprios atos,
quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se
originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou
oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em
todos os casos, a apreciação judicial.
Até mesmo no art. 116, parágrafo único do CTN, o legislador tomou o cuidado de não
falar em declaração de nulidade, o que é reservado ao poder judiciário, mas de
“DESCONSIDERAR atos OU negócios jurídicos”. E veja que, ainda assim, isso não poderá
acontecer por presunção, mas deverá vir acompanhada da edificação de um elemento
subjetivo, a “finalidade de dissimular”.
Art. 116. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá
desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de
dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos
elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os
procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Destarte, diferente do que faz crer o vídeo de apresentação, a construção doutrinária
brasileira leva a concluir em sentido contrário, que o procedimento do lançamento, de fato, é
meio inábil a se alcançar a tributação de doação em casos de valor módico.
X – Menções jurisprudenciais
O comentado vídeo da UGC/ITCMD/SEFAZ/SP cita alguns entendimentos
jurisprudenciais, levando a crer que a matéria guarda alguma pacificidade nos Tribunais
Paulista e Superior de Justiça. Vejamos:
Tributário – Mandado de Segurança – ITCMD – Venda de cotas sociais
por valor módico – Lançamento do tributo pelo fisco, que considerou o
negócio como doação Regularidade – Simulacro de negócio jurídico, a
fim de mascarar a doação e inibir a incidência do ITCMD – Sentença
denegatória da ordem inalterada – Recurso desprovido
(AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL N° 1989616 – SP
(2021/0305208-5), RELATOR: MINISTRO FRANCISCO FALCÃO)
Sobre esta jurisprudência, certos de que não há razão para colocar em xeque a boa-fé
do agente público que a apresentou (muito pelo contrário), acreditamos que houve algum
erro, pois esta não é a ementa do acórdão mencionado, mas uma citação na decisão
monocrática que NÃO CONHECEU o Recurso Especial, ou seja, não apreciou seu mérito.
Ao analisar a íntegra do processo, vemos que a passagem, em verdade, está assim
disposta:
Após sentença que denegou a ordem, foi interposta apelação a
qual foi improvida pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO, em acórdão assim ementado:
‘Tributário – Mandado de Segurança – ITCMD – Venda de cotas
sociais por valor módico – Lançamento do tributo pelo fisco, que
considerou o negócio como doação Regularidade – Simulacro de
negócio jurídico, a fim de mascarar a doação e inibir a incidência
do ITCMD – Sentença denegatória da ordem inalterada – Recurso
desprovido’
[…]
Logo, o recurso é inviável, assim porque chegar a entendimento
diverso, in casu, demandaria revolvimento fático probatório inviável em
sede de Recurso Especial ante o óbice da Súmula 7/STJ.
Ante o exposto, com fundamento no art. 253, parágrafo único, II,
a, do RISTJ, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial.
(íntegra da decisão disponível neste link)
Apesar do mérito NÃO ser um precedente do STJ, inegavelmente advém do TJSP e
comentaremos mais adiante. Por ora, seguimos analisando o segundo precedente do STJ
trazido a público:
MANDADO DE SEGURANÇA – TRIBUTÁRIO – ITCMD – Venda de cotas
sociais por valor módico – arbitramento pelo fisco de valor muito superior,
com base no patrimônio líquido da empresa, considerado o excesso
como doação – regularidade – ordem concedida – recurso oficial e da
fazenda do estado providos.
(AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL N° 2182407 – SP
(2022/0241216-7), RELATOR: MINISTRO GURGEL DE FARIA)
Trata-se do mesmo equívoco anterior (o que já fica evidente pela própria ementa, já
que não é competência do STJ julgar reexame necessário), a ementa, nada mais é que o
trecho de relatório da de uma decisão monocrática de não conhecimento do Recurso
Especial por demandar reexame de prova, sem adentrar ao mérito. Veja a decisão:
Trata-se agravo de JOSEMAR DE SOUZA e OUTRO da decisão
que inadmitiu recurso especial interposto, com fundamento na alínea “a”
do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo assim ementado (e-STJ fl. 194):
MANDADO DE SEGURANÇA – TRIBUTÁRIO – ITCMD – VENDA
DE COTAS SOCIAIS POR VALOR MÓDICO – ARBITRAMENTO
PELO FISCO DE VALOR MUITO SUPERIOR, COM BASE NO
PATRIMÔNIO LÍQUIDO DA EMPRESA, CONSIDERADO O
EXCESSO COMO DOAÇÃO – REGULARIDADE – ORDEM
CONCEDIDA – RECURSO OFICIAL E DA FAZENDA DO
ESTADO PROVIDOS.
[…]
Outrossim, mostra-se impossível rever esse juízo no sentido de
que a real intenção das partes na celebração do negócio jurídico seria o
de praticar doação, uma vez que demandaria desbordar do quadro fático
estabelecido nas instâncias ordinárias, providência sabidamente vedada
pela Súmula 7 do STJ.
(íntegra da decisão disponível neste link)
Outrossim, temos em destaque dois precedentes do TJSP em que se impôs o
pagamento de ITCMD em venda de quotas de capital social pelo que a Fazenda chama de
“valor módico”. Sobre estes, muito pouco temos a comentar, primeiro que, de fato, são dois
precedentes, mas não se pode dizer que se trata de jurisprudência como fonte do direito
(decisões reiteradas de um tribunal).
O primeiro trata-se de caso completamente diverso do que realizamos em
Planejamento Patrimonial, mas de empresa operacional em que um dos sócios faleceu, os
herdeiros receberam as quotas em herança, pagaram o imposto devido e, ato contínuo, sem
desejar integrar o quadro societário da empresa, venderam esta participação societária aos
demais sócios pelo valor nominal de suas quotas.
O segundo, da mesma forma, não se tratou de sociedade utilizada para Planejamento
Patrimonial, mas efetivamente uma empresa operacional, cujo valor da venda se deu pelo
seu valor nominal e que chamou a atenção do prolator do voto porque este valor nominal
foi constituído 20 anos antes da venda e no momento da transação ainda era o mesmo valor.
Ressalte-se que neste caso, com um voto que ocupou 3 laudas, teve um voto
divergente amplamente fundamentado, com 9 laudas e que forneceu muito mais elementos
norteadores à própria jurisprudência do Tribunal paulista do que o sentido contrário. Em
outras palavras, qual pese a decisão do precedente em contrário ao contribuinte, o voto
divergente é um assertivo sistema de orientação para os magistrados de doravante.
Mesmo por isso, embora se resguarde ao Fisco a possibilidade de, em
real e efetiva operação de doação, reavaliar a base de cálculo adotada
pelos contribuintes, a rigor do art. 14, §1o, da LE no 10.705/2000; por
outro lado, não há qualquer margem de legalidade na desconsideração
arbitrária (e não “por arbitramento”) do negócio jurídico real (e não
simulado) celebrado entre as partes (compra e venda e não doação),
com o propósito de criar fato imponível (transmissão gratuita de bens e
direitos) não ocorrente no plano dos fatos.
Mas o que nos chamou a atenção e nos entregou lamento foi o fato da parte
prejudicada com o julgamento deste recurso não ter oposto Embargos de Divergência,
sobretudo após um voto contrário tão bem fundamentado.
Em tempo, ao realizarmos sistemas de Planejamento Patrimonial (ainda que diverso
do que empregamos), adotamos o cuidado de verificar o posicionamento da jurisprudência
sobre eventuais teses do fisco e o que pudemos encontrar no Tribunal paulista foi um farto
acervo patrimonial em sentido diametralmente oposto ao postulado pela Autoridade
Administrativa. Vejamos:
== Precedente 1 ====
APELAÇÃO – Ação anulatória de débito fiscal – Escopo de anulação de
auto de infração e imposição de multa – ITCMD – Quotas de Capital de
Sociedade Limitada – Alegação do autor de transferência onerosa de
quotas do capital da empresa e não doação – AIIM lavrado no
pressuposto de doação, porquanto ocorreu cessão das quotas por
valor inferior ao de mercado – Prova documental comprobatória da
transferência onerosa das quotas – Aquisição de quotas de sociedade
– Pressuposto fático da ocorrência da transferência patrimonial, por
doação, não confirmado – Exação tributária indevida –
Inexigibilidade do crédito fiscal – Base de cálculo do ITCMD, em caso de
doação que deverá ser o valor patrimonial das quotas (valor contábil) e
não o valor de mercado, nos termos do disposto no art. 14, § 3o, da Lei
Estadual no 10.705/00 – Precedentes desta Corte – Sentença mantida –
RECURSO DESPROVIDO.
(TJSP; Apelação Cível 1001299-20.2023.8.26.0024; Relator (a): Vicente
de Abreu Amadei; Órgão Julgador: 1a Câmara de Direito Público; Foro
de Andradina – 1a Vara; Data do Julgamento: 13/05/2024; Data de
Registro: 13/05/2024)
== Precedente 2 ====
APELAÇÃO CÍVEL – Anulatória de Auto de Infração de Imposição de
Multa – Sentença de procedência – doação – Fato gerador – Cessão
Onerosa de quotas sociais por valor inferior ao de mercado –
Pretensão dos autores a nulidade do AIIM constituído pela Fazenda
Pública – Inexistência de diferença a ser recolhida – Ausência de prova
da existência de simulação ou qualquer outro meio que visasse
prejuízo ao fisco – Preço das cotas se insere no âmbito da liberdade
de contratar – Valor das cotas sociais relacionados ao aspecto
quantitativo da regra matriz e não altera a regra de incidência – Ausência
de causa para a lavratura do Auto de Infração e Imposição de Multa no
4.116.552-4 – Sentença de procedência mantida – Recurso não provido.
(TJSP; Apelação Cível 1024109-75.2020.8.26.0482; Relator (a):
Francisco Shintate; Órgão Julgador: 4a Câmara de Direito Público; Foro
de Presidente Prudente – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento:
29/11/2021; Data de Registro: 01/12/2021)
== Precedente 3 ====
APELAÇÃO – AÇÃO ANULATÓRIA – ITCMD – DOAÇÃO – FATO
GERADOR – CESSÃO ONEROSA DE QUOTAS SOCIAIS POR VALOR
INFERIOR AO DE MERCADO – INOCORRÊNCIA DE TRANSMISSÃO
INTER VIVOS E GRATUITA DE BENS – Pretensão inicial dos autores
voltada à anulação de crédito de ITCMD constituído pela administração
tributária com base em suposta doação de bens apurada em
procedimento de cessão onerosa de quotas sociais de empresa –
admissibilidade – presunção adotada pelo FISCO no sentido de que a
diferença entre o valor de venda e o valor patrimonial das quotas
sociais caracterizaria doação dissimulada por cessão onerosa de
direitos – ausência, no entanto, de elementos de informação capazes
de comprovar a simulação – composição do preço das quotas sociais
que se insere no âmbito da liberdade de contratar – fato imponível do
ITCMD que pressupõe a efetiva realização de negócio jurídico de
transmissão gratuita de bens – divergência entre o valor da operação
das quotas sociais utilizado pelos cedentes e aquele arbitrado como “de
mercado” pelo Fisco que, per se, não autoriza a verificação do fato
gerador do ITCMD – valor de mercado das quotas que está associado
apenas ao aspecto quantitativo da regra matriz, sem ter o condão de
alterar a própria definição dos elementos materiais da regra de
incidência – ausência de causae debendi válida para a lavratura do AIIM
no 4.116.551-2 – sentença de procedência da demanda mantida.
Recurso voluntário da FESP e remessa oficial desprovidos.
(TJSP; Apelação Cível 1021723-72.2020.8.26.0482; Relator (a): Paulo
Barcellos Gatti; Órgão Julgador: 4a Câmara de Direito Público; Foro de
Presidente Prudente – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento:
27/09/2021; Data de Registro: 07/10/2021)
== Precedente 4 ====
APELAÇÃO – AÇÃO ANULATÓRIA – ITCMD – DOAÇÃO – FATO
GERADOR – CESSÃO ONEROSA DE QUOTAS SOCIAIS POR VALOR
INFERIOR AO DE MERCADO – INOCORRÊNCIA DE TRANSMISSÃO
INTER VIVOS E GRATUITA DE BENS – Pretensão inicial dos autores
voltada à anulação de crédito de ITCMD constituído pela administração
tributária com base em suposta doação de bens apurada em
procedimento de cessão onerosa de quotas sociais de empresa –
admissibilidade – presunção adotada pelo FISCO no sentido de que a
diferença entre o valor de venda e o valor patrimonial das quotas
sociais caracterizaria doação dissimulada por cessão onerosa de
direitos – ausência, no entanto, de elementos de informação capazes
de comprovar a simulação – composição do preço das quotas sociais
que se insere no âmbito da liberdade de contratar – fato imponível do
ITCMD que pressupõe a efetiva realização de negócio jurídico de
transmissão gratuita de bens – divergência entre o valor da operação e o
de mercado das quotas sociais que, per se, não autoriza a verificação do
fato gerador – valor de mercado das quotas que está associado
apenas ao aspecto quantitativo da regra matriz, sem ter o condão
de alterar a própria definição dos elementos materiais da regra de
incidência – ausência de causae debendi válida para a lavratura do AIIM
no 4.116.553-6 – sentença de procedência da demanda mantida.
Recurso voluntário da FESP e remessa oficial desprovidos.
(TJSP; Apelação Cível 1010768-79.2020.8.26.0482; Relator (a): Paulo
Barcellos Gatti; Órgão Julgador: 4a Câmara de Direito Público; Foro de
Presidente Prudente – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento:
09/08/2021; Data de Registro: 17/08/2021)
== Precedente 5 ====
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – DECLARAÇÃO DE
INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA – ITCMD –
FATO GERADOR – NÃO OCORRÊNCIA – AQUISIÇÃO DE QUOTAS
DE SOCIEDADE LIMITADA – DOAÇÃO NÃO CONFIGURADA –
IMPOSTO INDEVIDO. Declaração de inexistência de relação
jurídico-tributária. ITCMD. Lançamento que teve como base a compra
de quotas pela autora em sociedade limitada. Suposta doação
afastada pelos documentos apresentados pela autora. Hipótese de
incidência do imposto não verificada. Exegese do art. 2o, II, da Lei no
10.705/00 e artigos 110 CTN e 538 CC. Precedentes. Pedido
procedente. Sentença mantida. Reexame necessário, considerado
interposto, e recurso desprovidos.
(TJSP; Apelação Cível 1034917-56.2017.8.26.0576; Relator (a): Décio
Notarangeli; Órgão Julgador: 9a Câmara de Direito Público; Foro de São
José do Rio Preto – 2a Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento:
19/03/2018; Data de Registro: 19/03/2018)
XI – Em São Paulo já existe uma Lei Específica? Pode o Estado criar a Lei
Específica???
Numa ocasião acadêmica recente, tivemos a honrosa oportunidade de assistir uma
aula ministrada pelo mesmo agente fiscal que apresenta o mencionado vídeo, a qual
apontava que, naquilo que diz respeito ao cumprimento do art. 116, parágrafo único do CTN
acerca da lei específica prevendo o procedimento administrativo de desconsideração do
negócio jurídico, pois o ITCMD de São Paulo segue as regras de procedimento
administrativo do ICMS por remissão expressa.
No entanto, o que pudemos constatar é bem distinto. A regulamentação do ITCMD de
São Paulo é disciplinada no Decreto 46.655/2002, que em seu Capítulo XII, em que trata
das penalidades, especialmente no art. 40, parágrafo único diz:
DECRETO No 46.655 de 1o de Abril de 2002
CAPÍTULO XII – Das Penalidades
Artigo 38 – O descumprimento das obrigações principal e acessórias,
instituidas pela legislação do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis”
e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD, fica sujeito às
seguintes penalidades:
II – por meio de lançamento de ofício:
a) em decorrência de omissão do contribuinte, responsável, serventuário
de justiça, tabelião ou terceiro, o infrator fica sujeito à multa
correspondente a uma vez o valor do imposto não recolhido;
[…]
Artigo 40 – A lavratura de auto de infração e a imposição de multa são
atos da competência privativa dos Agentes Fiscais de Rendas.
Parágrafo único – Aplica-se, no que couber, ao procedimento
decorrente de autuação e imposição de multa, a disciplina
processual estabelecida na legislação do Imposto sobre Operações
Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestação de
Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de
Comunicação – ICMS.
Ora, ao que parece, não há remissão alguma a procedimento tendente a verificar a
ocorrência de fato gerador simulado, mas um procedimento específico após a autuação.
Mas, para não nos precipitarmos, analisemos o que diz a norma acerca do ICMS, mormente
a Lei Estadual 13.457/2009:
LEI No 13.457, DE 18 DE MARÇO DE 2009
CAPÍTULO II – Do Procedimento na Delegacia Tributária de Julgamento
Artigo 33 – O processo administrativo tributário regulado por esta lei tem
por origem a apresentação de defesa, em face de auto de infração
lavrado por Agente Fiscal de Rendas.
Pronto, sanada está a dúvida: não existe procedimento algum no estado de São Paulo
que atenda o comando do art. 116, parágrafo único do CTN, eis que a norma paulista em
destaque regula o que acontece após a autuação, já quando da apresentação de defesa, não
o que está na origem da obrigação tributária, a ocorrência do fato gerador.
Em tempo, devemos nos atentar à seguinte indagação: pode o Estado de São Paulo
criar esse procedimento específico? Ou esta seria uma matéria reservada à União?
Entendemos que aqui se trata de tese idêntica aquela firmada em Repercussão Geral
pelo STF no Tema 825, exatamente contrária ao Estado de São Paulo. O caso versava sobre
a Lei Complementar a ser criada para regulamentar as doações em que o doador tem
residência ou domicílio no exterior. Veja o que diz o texto constitucional:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos
sobre:
I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;
[…]
§ 1o O imposto previsto no inciso I:
[…]
III – terá competência para sua instituição regulada por lei
complementar:
a) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior;
O Estado de São Paulo regulava a matéria em Lei Complementar local (Lei
10.705/2000):
Lei no 10.705/2000
Artigo 4o – O imposto devido nas hipóteses abaixo especificadas, sempre
que o doador residir ou tiver domicílio no exterior, e, no caso de
morte, se o “de cujus” possuía bens, era residente ou teve seu inventário
processado fora do país:
I – sendo corpóreo o bem transmitido:
a) quando se encontrar no território do Estado;
b) quando se encontrar no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário
tiver domicílio neste Estado;
II – sendo incorpóreo o bem transmitido:
a) quando o ato de sua transferência ou liquidação ocorrer neste Estado;
b) quando o ato referido na alínea anterior ocorrer no exterior e o
herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado.
O Supremo Tribunal Federal fixou, então, a súmula sobre a Tese 825 evidenciando
que não cabe aos Estados criarem esta norma, que esta é reservada à União, a criação de
uma nacional que uniformize todo o país.
Ementa:
Recurso extraordinário. Repercussão geral. Tributário. Competência
suplementar dos estados e do Distrito Federal. Artigo 146, III, a, CF.
Normas gerais em matéria de legislação tributária. Artigo 155, I, CF.
ITCMD. Transmissão causa mortis. Doação. Artigo 155, § 1o, III, CF.
Definição de competência. Elemento relevante de conexão com o
exterior. Necessidade de edição de lei complementar. Impossibilidade de
os estados e o Distrito Federal legislarem supletivamente na ausência da
lei complementar definidora da competência tributária das unidades
federativas.
Tese Fixada:
É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas
hipóteses referidas no art. 155, § 1o, III, da Constituição Federal sem a
intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo
constitucional.
O Acórdão ainda contém uma importante lição a ser recebida:
O art. 4o da Lei paulista no 10.705/00 deve ser entendido, em particular,
como de eficácia contida, pois ele depende de lei complementar para
operar seus efeitos. Antes da edição da referida lei complementar,
descabe a exigência do ITCMD a que se refere aquele artigo, visto que
os estados não dispõem de competência legislativa em matéria tributária
para suprir a ausência de lei complementar nacional exigida pelo art.
155, § 1o, inciso III, CF. A lei complementar referida não tem o sentido
único de norma geral ou diretriz, mas de diploma necessário à fixação
nacional da exata competência dos estados.
Não é demais destacar que no Tema 825, o Supremo apenas reproduziu o que já era
o entendimento do Órgão Especial do TJSP:
APELAÇÃO e REEXAME NECESSÁRIO – Mandado de segurança
preventivo – “ITCMD – Doações” ( CF, art. 155, I) – Doação de quotas
sociais de empresa situada no Brasil, por doador residente ou
domiciliado no exterior – Segurança concedida – Pretensão de inversão
do julgamento – Impossibilidade – Lançamento tributário baseado na Lei
Estadual n. 10.705/2000, art. 4o, II, b – Não cabimento –
Inconstitucionalidade reconhecida pelo Órgão Especial desta Corte, em
sede de arguição de inconstitucionalidade – Hipótese de incidência
tributária que depende de regulação por Lei Complementar – Inteligência
do art. 155, § 1o, III, b – Norma de eficácia limitada – Omissão legislativa
que não pode ser suprida pelo Estado-membro – Posicionamento
também adotado por esta Câmara – Precedentes – Manutenção da
sentença – Não provimento da apelação, com solução extensivo ao
reexame necessário.
(TJ-SP – APL: 10261654920168260053 SP 1026165-49.2016.8.26.0053,
Relator: Maria Olívia Alves, Data de Julgamento: 04/02/2019, 6a Câmara
de Direito Público, Data de Publicação: 06/02/2019)
Tenho claro que, neste sentido, a norma prevista no art. 116, parágrafo único deve ser
editada pela união, para que uniformize a sistemática do gravoso procedimento que é a
desconsideração de um negócio jurídico válido (eis que não há decisão judicial pela sua
nulidade), para que não convivamos com 5.684 disposições diferentes no país (5.565
municípios, 27 unidades federativas e a União).
XII – Ad argumentandum tantum… a Tipicidade!
Ainda que já existisse a norma prevista no art. 116, parágrafo único do CTN, tenho
dúvidas (e por que não dizer, posicionamento divergente) se a Situação 3 descrita pela
fazenda de São Paulo estaria autorizada a ser apurada neste procedimento, por faltar
tipicidade na equiparação da compra e venda com pagamento por preço módico à doação.
No sistema tributário nacional a Tipicidade é uma decorrência do Princípio da
Legalidade que, por sua vez, consagra o conceito de tributo consentido. O Professor Alberto
Xavier leciona que:
O brocardo “nullum crimen, nulla poena sine lege” tem o seu
equivalente no Direito Tributário: “nullum tributum sine lege“. Da mesma
forma, pois, que no Direito Penal o princípio da tipicidade surgiu corno
técnica de proteção dos cidadãos contra os poderes decisórios do juiz,
ele revelou-se no Direito Tributário como instrumento de defesa dos
particulares em face do arbítrio da Administração.
O princípio da tipicidade não é, ao contrário do que já uns
sustentaram, um princípio autônomo do da legalidade: antes é a
expressão mesma deste princípio quando se manifesta na, forma de
uma reserva absoluta de lei, ou seja, sempre que se encontra construído
por estritas considerações de segurança jurídica
(XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da
Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 69-70).
Portanto, essa equiparação dependeria de haver lei explicitamente tipificando o ato
como fato gerador do ITCMD, sob pena de não ser possível enquadrar o vislumbre da venda
a preço módico como doação no fato gerador, já que hoje tal conduta está alheia à hipótese
de incidência existente na norma.
Nesse sentido Hugo de Brito Machado, diante ao conceito de fato gerador
estabelecido no art. 114 do CTN (“Fato gerador da obrigação principal é a situação definida
em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”), discorre que:
a) Situação, significando fato, conjunto de fatos, situação de fato,
situação jurídica. Fato em sentido amplo. Toda e qualquer ocorrência,
decorrente ou não da vontade. Mas sempre considerada como fato, vale
dizer, sem qualquer relevância dos aspectos subjetivos.
b) Definida em lei, vale dizer que a definição do fato gerador da
obrigação tributária principal, a descrição da situação cuja ocorrência faz
nascer essa obrigação, é matéria compreendida na ressalva legal. Só a
lei é o instrumento próprio para descrever, para definir, a situação
cuja ocorrência gera a obrigação tributária principal. Veja-se, a
propósito, o que expressa o art. 97, item III, do CTN, tendo presente que
a palavra lei é por este utilizada em sentido restrito.
c) Necessária, importa dizer que, sem a situação prevista em lei,
não nasce a obrigação tributária. Para surgir a obrigação tributária é
indispensável a ocorrência da situação prevista em lei.
d) Suficiente, significa que a situação prevista em lei é bastante.
Para o surgimento da obrigação tributária basta, é suficiente, a
ocorrência da situação descrita na lei para esse fim.
(MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 11. ed. São
Paulo: Malheiros, 1996, p. 89-90)
No julgamento da ADI 2446, o Supremo também versou sobre isso:
O fato gerador ao qual se refere o parágrafo único do art. 116 do
Código Tributário Nacional, incluído pela Lei Complementar n. 104/2001,
é, dessa forma, aquele previsto em lei.
Faz-se necessária, assim, a configuração de fato gerador que, por
óbvio, além de estar devidamente previsto em lei, já tenha efetivamente
se materializado, fazendo surgir a obrigação tributária.
Assim, a desconsideração autorizada pelo dispositivo está
limitada aos atos ou negócios jurídicos praticados com intenção de
dissimulação ou ocultação desse fato gerador.
O parágrafo único do art. 116 do Código não autoriza, ao
contrário do que argumenta a autora, “a tributação com base na
intenção do que poderia estar sendo supostamente encoberto por
um forma jurídica, totalmente legal, mas que estaria ensejando
pagamento de imposto menor, tributando mesmo que não haja lei
para caracterizar tal fato gerador” (fl. 3, e-doc. 2, grifos nossos).
A autoridade fiscal estará autorizada apenas a aplicar base de
cálculo e alíquota a uma hipótese de incidência estabelecida em lei
e que tenha se realizado.
No mesmo sentido, também temos o postulado do professor Luciano Amaro,
recordando o que a doutrina qualifica como sendo Tipicidade Fechada:
Deve o legislador, ao formular a lei, definir, de modo taxativo (numerus
clausus) e completo (…) os critérios de quantificação (medida) do tributo.
(…) À vista da impossibilidade de serem invocados, para a
valorização dos fatos, elementos estranhos aos contidos no tipo
legal, a tipicidade tributária costuma qualificar-se de fechada ou cerrada,
de sorte que o brocardo nullum tributum sine lege traduz ‘o imperativo de
que todos os elementos necessários à tributação do caso concreto
contenham e apenas se contenham na lei’.
(AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 9a Ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 103)
Por fim, Paulo Barros Carvalho diz que a norma deve “fechar o cerco”, deve concluir
nela mesmo todos os elementos constituintes do tipo tributário.
Assinale-se que à lei instituidora do gravame é vedado deferir atribuições
legais a normas de inferior hierarquia, devendo, ela mesma, desenhar a
plenitude da regra matriz da exação, motivo por que é inconstitucional
certa prática, cediça no ordenamento brasileiro, e consistente na
delegação de poderes para que órgãos administrativos completem o
perfil dos tributos.
(CARVALHO, Paulo Barros. Curso de Direito Tributário. 7a Ed. São
Paulo: Saraiva, 2000, p. 48).
Ex positis, a única alternativa ao fisco para fazer valer seu postulado seria a edição de
Lei especificando a “doação por equiparação”, o que ao nosso sentir, baseado nas fontes de
direito aqui sopesadas, seria inconstitucional.
XIII – Conclusão
Apesar de já sopesada grande parte das questões inerentes à operação Loki, que
figurou como objeto da análise deste autor, ainda são muitos os elementos que poderíamos
avançar, sobretudo se partíssemos para os demasiados exemplos existentes em nossa
sociedade, de empresas gigantescas que foram vendidas a “valor módico” porque havia um
interesse mercadológico dos negociantes que lhes são próprios e íntimos e sequer podem
ser indagados, sob pena de cometer ofensa a outro princípio constitucional, o da Livre
Iniciativa, contido no art. 170 da Carta Magna.
A regra do jogo tributário tem que ser respeitada. Não pode o Estado, mesmo o
personificado em um ser humano que exerce a função pública e, por conseguinte dotado de
falibilidade, agir no exercício fiscalizatório com excesso de exação, buscando formular teses
para alcançar tributos que não estão devidamente moldados à hipótese de incidência
prevista pela norma.
Nosso regime tributário parte do consentimento. O limite deste consentimento está
explicitamente delineado na norma, através da hipótese de incidência. Não cabe à
autoridade fiscal estender tal hipótese às suas abstrações e convencimentos pessoais, por
mais razoáveis e honestos que possam parecer.
O tributo é uma violência do Estado contra o indivíduo que, mesmo em nome do bem
estar social, só é admitida se devidamente enquadrada naquilo que a própria sociedade
consentiu.
No caso em análise, vemos que só haveria duas hipóteses de prevalecer a cobrança
do ITCMD e ambas partem do consentimento, ou seja, do próprio povo gerando as normas
aplicáveis através de seus representantes eleitos e seguindo todo o processo legislativo.
A primeira delas seria por Lei Complementar, alterando a configuração do fato gerador
e expressamente prevendo que o tributo incide em atos onerosos que a onerosidade não
seja condizente com a contraprestação daquele que transfere de si o patrimônio para
terceiros.
E é óbvio que isso jamais aconteceria, pois geraria uma fuga de empreendimentos do
Estado e a norma certamente não passaria pelo controle de constitucionalidade do Órgão
Especial do TJSP, sobretudo porque, indiferente de quantidade de julgados, o que mais
vemos se repetir na jurisprudência paulista é:
“valor de mercado das quotas que está associado apenas ao aspecto
quantitativo da regra matriz, sem ter o condão de alterar a própria
definição dos elementos materiais da regra de incidência“
E, por mais que viesse ao ordenamento uma Lei Complementar nesse sentido, ela
estaria em absoluto desacordo com a “definição dos elementos materiais da regra de
incidência”, já que esta se materializa pela combinação do art. 155, inciso I da Constituição
Federal com o art. 538 do Código Civil.
CF, art. 155, I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens
ou direitos;
CC, art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por
liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de
outra.
A outra seria com a edição da Lei Ordinária prevista no art. 116, parágrafo único do
CTN, criando-se então o procedimento específico para que a autoridade administrativa
possa, a partir de então (e só a partir de então) desconsiderar certos atos e negócios
jurídicos praticados com a finalidade de dissimular o fato gerador.
É direito do agente público divergir veementemente de tais operações, de acreditar
que são operações absurdas e merecem e devem ser combatidas pelo poder público. É
direito deles enxergar que se trata de algo absolutamente errado e que deve sim ser
repudiada por todos.
No entanto e a título de exemplo, da mesma forma que não é direito de nenhuma
dessas pessoas (assim como de nenhum brasileiro) tirar a vida de alguém que furta, não é
admissível um ato praticado em atividade que não esteja PLENAMENTE vinculada (art. 3o do
CTN) para cobrar o tributo. É a regra do jogo!
Aquele que atingiu a função pública por seus valorosos méritos ao ter se submetido a
concurso público merece nosso aplauso e consideração. Todavia, precisam enxergar os
limites dessa função, enxergar que o consentimento não lhes cabe, pois o consentimento
não vem do mérito pessoal, mas da representatividade direta do povo, que elege seus
representantes para elaborar as normas do bem estar social, em especial aquelas que terão
como contrapartida o ato de violência patrimonial do Estado contra o indivíduo.
O que pretende a administração pública nesta operação é a porta de entrada para
algo ainda mais preocupante. Se a aquisição de quotas de capital social pelo que eles
chamam de “valor módico” for sinônimo de doação simulada, da mesma forma seria a
compra de quotas por valor superior ao do mercado, o que seria o fim da atividade
econômica, pois é esperado dos sócios que invistam em suas empresas, de preferência,
muito acima do valor nominal de suas quotas.
As práticas de compra e venda de participação societária são tão comuns no mercado
que nosso sistema de contabilidade, hoje adequado ao sistema internacional de
contabilidade instituído na Lei 6.404/1976, tem diversos comandos de como se estruturam
essas aquisições. Vale ressaltar que as diretrizes específicas são feitas pelo Comitê de
Pronunciamento Contábil, do qual também participa o fisco.
Nesta Operação Loki, sobretudo no que diz respeito à mencionada Situação 3, o fisco
pretende algo que é completamente alheio ao mercado, ao direito e às próprias pretensões
do Estado de São Paulo, pois um posicionamento dessa maneira causará uma fuga de
empresas se vier a se consolidar como regra.
_______________________________
XIV – Sobre os Autores:
Professor Marcio Carvalho de Sá, bem como os co-autores Elaine Cristina Montenegro de
Paula Bastos, Bruna Santos Souza, Cristiane Postiga de Castro, Daniel Rodrigues Silva,
Isabela Cristina de Azevedo Teixeira, Izabela Amoreth, Priscila Fiuza Meireles, Sávio da Silva
Martins de Mello e Thaiane Almeida de Souza, são integrantes do Time Holding Brasil,
pesquisadores jurídicos e profissionais atuantes em Planejamento Patrimonial com Holdings
Familiares.