Edição 017 • 13/11/2024 09:02

ARTIGO

A construção de holding familiar com imóveis financiados ou dados em garantia

A Holding Familiar é a favorita daqueles que buscam um planejamento sucessório. Bem verdade é que não se trata exatamente disso, mas de uma organização patrimonial que vai permitir às famílias nunca passarem por um processo de sucessão patrimonial, impedindo o surgimento de todos os problemas comuns nesse momento, como a necessidade de iniciar inventário, pagamento de despesas que consomem grande parte do patrimônio, discussões sobre a herança deixada, sem falar na burocracia que pode se arrastar por anos.

Naturalmente, as famílias que têm conhecimento desse imbróglio vão buscar soluções para dele se livrar e isso é possível através do planejamento patrimonial em vida, com um sistema de Holding Familiar.

Esse sistema parte de uma ideia bastante simples, de organizar o patrimônio familiar em nome de uma instituição pertencente à família, que nunca morre. Assim, evitando a obrigação de se fazer o processo de inventário na ausência dos patriarcas.

Seu funcionamento, depois de construído, também não tem nenhuma complexidade e não vai exigir tempo nem trabalho da família. No entanto, a construção desse sistema é um tanto complexa e se recomenda a contratação de um profissional especializado, que conheça cada detalhe, para garantir a segurança, evitar surpresas e até mesmo prejuízos que podem ser causados pela falta de conhecimento.

Nesse processo de construção de uma Holding Familiar é muito comum que as famílias possuam bens imóveis financiados ou que foram dados em garantia ao banco para a contratação de um empréstimo e também precisam ser protegidos de serem consumidos, no futuro, em um processo de inventário.

Como os imóveis ficam garantindo uma dívida, que caso não seja paga pelo devedor poderá resultar no leilão do bem garantidor, há certas restrições ou cuidados que devem ser tomados ao transferi-los para uma Holding Familiar.

Para entender melhor a viabilidade de inclusão desses imóveis é preciso diferenciar as duas formas mais comuns de garantia de uma operação: a alienação fiduciária e a hipoteca.

A cláusula de incomunicabilidade na Holding Familiar

Dentro da holding familiar, a cláusula de incomunicabilidade é frequentemente utilizada para proteger os ativos da família de disputas conjugais, credores individuais e outros eventos adversos que possam afetar o patrimônio familiar, assim, acrescentando que ao estabelecer essa cláusula nos documentos constitutivos da holding, os membros da família podem garantir que os ativos permaneçam protegidos e preservados para benefício das gerações futuras.

Como ressalta Rodrigues (2024), A cláusula de incomunicabilidade tem como objetivo evitar que o patrimônio doado ao filho (quota da sociedade patrimonial) se comunique com seu cônjuge. Como é amplamente conhecido, as pessoas casadas geralmente compartilham o patrimônio que acumulam juntas, dependendo da escolha de um dos regimes de casamento disponíveis.

Pois, ao doar as quotas da sociedade patrimonial, os pais as destinam aos herdeiros, aos filhos, não a terceiros, como o cônjuge dos filhos, por exemplo, daí a incomunicabilidade impedir que os bens sejam transferidos para terceiros, cumprindo a vontade do doador.

A cláusula de incomunicabilidade nada mais é que impedir que o patrimônio herdado ou doado não se misture ao patrimônio comum do beneficiário casado em regime de comunhão universal de bens, para que em eventual divórcio ou separação estes bens doados ou herdados não componham a partilha. (NEVES, 2014, p. 357) Trata-se de uma proteção que alcança aqueles que serão sucessores no sistema de Holding Familiar, no que diz respeito aos seus cônjuges e companheiros. Esta é uma proteção importante, uma vez que, a depender do regime de comuhão de bens escolhido, seja na constância do casamento ou da união estável, será estabelecida a divisão patrimonial para o casal. Neste contexto, a clausula de incomunicabilidade implementada na constituição da holding familiar evita que terceiros tenham direitos na quota destinada aos sucessores. Importante destacar, o que diz Nascimento (2024) nos termos do art. 1669 do Código Civil, “a incomunicabilidade dos bens não se estende aos frutos durante o casamento, sendo que estes deverão ser partilhados entre os ex-cônjuges ou ex-companheiros”. Isto é, apenas o que for adquirido na constança do casamento, será partilhado entre o casal.

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA

A alienação fiduciária existe nos contratos tradicionais de financiamento imobiliário, em que o próprio imóvel garante o pagamento da dívida caso ela não seja adimplida.

Prevista inicialmente para garantia de operações realizadas com bens móveis pela Lei 4.728/65 e atualmente regida pelos artigos 1.361 a 1.368-B do Código Civil, a alienação fiduciária passou a ser aplicada sobre operações com bens imóveis com o advento da Lei 9.514/97.

Nessa modalidade a propriedade resolúvel e a posse indireta (Lei 9.514/97, arts. 22/23) do imóvel pertencem ao banco até que o contrato de financiamento seja quitado.

A parte fiduciante, devedora, não tem a propriedade, mas a posse direta e o direito eventual à propriedade plena após o pagamento da dívida e encargos. Direitos estes que podem ser transferidos a terceiros, com anuência do credor fiduciário, conforme autoriza o art. 29 da Lei 9.514/97, assumindo o adquirente as obrigações outrora de responsabilidade do devedor.

Trazendo para o caso de incorporação do bem ao patrimônio de uma Holding Familiar, verifica-se que não será possível transferir a propriedade, pois esta não pertence à família, mas sim o direito de, algum dia, após a quitação da dívida, adquirir a propriedade.

Essa transferência somente poderá ser realizada após a anuência da instituição financeira credora e a assunção de todas as obrigações pela holding, inclusive o pagamento do saldo remanescente.

Possível obstáculo, aqui, poderá ser a avaliação de crédito em nome da Holding Familiar, que poderá não ter acesso às mesmas condições do financiamento em nome da pessoa física, especialmente quando se tratar de pessoa jurídica recém constituída.

O ideal será, então, transferir o direito aquisitivo que pertence à pessoa natural para a instituição jurídica da família, que guardará os bens. Porém, mantendo o contrato atual em nome da pessoa física. Seria isso possível?

Obviamente que isso depende da anuência da instituição financeira e de sua boa vontade na análise do caso. Mas a hipótese é legalmente viável, especialmente após a promulgação da Lei nº 14.711, de outubro de 2023, que passou a permitir expressamente a contratação de alienação fiduciária para garantia de obrigações de terceiros ao incluir tal previsão no art. 22, da Lei 9.514/97:

Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. (grifou-se)

Ora, se a alienação fiduciária pode ser utilizada para garantir operações de terceiros, então o imóvel pertencente à holding poderia garantir, por essa modalidade, a obrigação contratada por um dos sócios da empresa.

Portanto, não parece haver qualquer impedimento para que, em um contrato de financiamento com alienação fiduciária já vigente em nome do sócio, essa garantia permaneça e, mantidas as obrigações contratuais na pessoa do quotista, sejam transferidos os direitos aquisitivos sobre o imóvel para a sociedade.

O imóvel continua alienado fiduciariamente em favor do Banco, que terá exatamente os mesmos direitos, especialmente no caso de inadimplemento da obrigação, podendo levar o imóvel a leilão ou consolidar a propriedade em seu favor. Mas na quitação total da dívida contraída, a propriedade seria registrada em nome da holding familiar.

Como dito, é uma possibilidade que depende da anuência e boa vontade da instituição financeira. Mas infelizmente não poderá ser aplicada quando o financiamento for contratado conforme as regras do Sistema Financeiro de Habitação - SFH, cuja transferência tem como fundamento na Lei 8.004/90.

Nesse caso, a lei prevê que a cessão de direitos dar-se-á, após a anuência da instituição financeira, com a transferência do respectivo financiamento para o adquirente, que será efetivada com a contratação de nova operação sujeita às normas do SFH. No entanto, esse sistema tem como objeto a aquisição de casa para residência do adquirente, sua família e seus dependentes. Portanto, não é possível para a pessoa jurídica da Holding Familiar contratar financiamento sob as condições especiais do SFH, restando somente a contratação de nova operação destinada à aquisição do imóvel pelas modalidades tradicionais.

HIPOTECA

A hipoteca é outra modalidade de garantia de empréstimos, que é levada a registro na matrícula do imóvel que, no caso de inadimplemento da dívida, servirá para garantir o cumprimento da obrigação.

Se diferencia da alienação fiduciária especialmente porque, na hipoteca, a propriedade permanece com o devedor, assim como a posse direta do bem.

Já ao credor, resta o direito de sequela. Ou seja, no caso de descumprimento da obrigação, poderá buscar o bem dado em garantia mesmo que não pertença mais ao garantidor. E aqui chegamos ao ponto de interesse deste artigo. A hipoteca não impede que o bem seja alienado.

Com efeito, o art. 1.475 do Código Civil determina que a cláusula que proíbe o proprietário de alienar o imóvel hipotecado é nula. No entanto, pode o contrato prever que o crédito ter-se-á por vencido caso o bem seja alienado.

Portanto, em se tratando de garantia hipotecária, não há qualquer restrição para a alienação do imóvel em favor da holding Familiar. Sendo prudente, no entanto, verificar se o contrato prevê a antecipação do vencimento da operação em caso de alienação do bem hipotecado.

CONCLUSÃO

A existência de um financiamento ou empréstimo garantido por hipoteca ou alienação fiduciária do imóvel a ser incorporado na Holding Familiar não inviabiliza a construção desse sistema. No entanto, a manipulação destes imóveis deve ser cuidadosa, devendo o responsável ter ciência de todas as possíveis consequências e verificar, caso a caso, o caminho ideal a ser seguido para incorporar bens que garantem operações financeiras ao patrimônio de uma holding.

A Caixa Econômica Federal, maior financiador imobiliário do Brasil, na prática tem negado transações de cessão dos direitos sobre imóveis com alienação fiduciária, mesmo com contratos não regidos pelo SFH, alegando falta de previsão dessa operação específica na normativa interna do Banco.

Certamente que isso poderia ser superado simplesmente pela inclusão dessa operação da norma, uma vez que a legislação, conforme demonstrado, já a permite. O que deve ocorrer conforme os sistemas de holdings familiares se tornem mais conhecidos.

Apesar disso, a existência de um imóvel gravado com alienação fiduciária dentre os bens familiares a serem protegidos não afasta a viabilidade, ou mesmo a necessidade, de organização do patrimônio. Cada caso deverá ser analisado com cuidado por um profissional capacitado, que poderá apontar os caminhos alternativos e seguros para a construção da Holding Familiar.

Referências bibliográficas:

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

______. Lei Ordinária nº 4.728, de 14 de julho de 1965. Disponível em: . Acesso em 29 abr. 2024.

______. Lei Ordinária nº 9.514, de 20 de novembro de 1997. Disponível em: . Acesso em 29 abr. 2024.

______. Lei Ordinária nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: . Acesso em 29 abr. 2024.

______. Lei Ordinária nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Disponível em: . Acesso em 29 abr. 2024.

Rafael Maione Teixeira é advogado do escritório Maione Teixeira Advocacia e Consultoria Tributária. Membro Diamante do Time Holding Brasil, é especialista em Planejamento Patrimonial da Família, pós-graduado em Direito Tributário e com MBA em Controladoria e Planejamento Tributário pela Universidade Federal do Tocantins.